OUTUBRO (VIRGINDADE PERDIDA)
ergui minha mão esquerda para tocar seu rosto com a ponta dos dedos, eu ainda estava verde, ainda não sabia que meus dedos deixariam marcas indeléveis naquele quadro único, eu era uma criança com as mãos cheias de sujeira, meladas de calda de chocolate. tarde demais percebi que meu toque mudaria tudo. talvez eu devesse ter permanecido calada, sorvendo ávida e cuidadosamente o néctar da sua imagem. permitindo que pedacinhos de você me penetrassem devagar, deliciosamente, como quem faz amor. a sua voz que ressoava gloriosa e rouca no silêncio, tornando a vida tolerável às sete da manhã de segunda feira. seus dedos tamborilando nas paredes, nas mesas, em qualquer lugar, você era incansável, você não parava nunca. o seu olhar de um castanho embebido de estrelas, se derramando de malícia quando esbarrava no meu, deus, mas o que era aquele olhar que me enchia de terror e desejo, que eu não sustentava nunca, eu logo desviava, e recolhia meu próprio olhar à minha colossal insignificância. talvez eu jamais devesse ter interferido, apenas aquele você na minha memória já bastaria para atravessar a vida com poesia durante milênios.
mas não, eu não pensei, eu nunca penso - e sem pensar me estendi sobre fendas sem fundo para alcançá-lo, e senti a textura da sua pele, macia e fina, fina demais para esta vida de pedras. senti as rugas que prematuramente já lhe tomavam o rosto, que antes eu não via, tamanha a cegueira causada pela luz que você refletia. e senti a umidade do seu suor, do seu sangue, do seu medo, das suas lágrimas - até então não sabia que você também chorava. apavorada, tentei me afastar, e qual não foi minha surpresa ao me ver detida pelo seu toque em garra, forte na desesperada tentativa de me impedir de partir. sua mão tremia tanto, você tremia tanto. senti meus ossos se dissolvendo rápido no ar rarefeito, e escapei, escorregadia, pelas frestas de seus dedos. meu peito em polvorosa, despreparado para enfrentar sua inesperada, indesejada humanidade.
e quando estava novamente longe o suficiente, voltei pela última vez o olhar para aquele seu rosto de estátua renascentista, a paisagem preenchida com ele, nunca tão cheia dele. suas pálpebras secas, mas eu suspirava, eu que agora conhecia as suas lágrimas que só se revelam ao toque. eu que enxergava as marcas invisíveis dos meus dedos na sua pele de alabastro. eu que agora compreendia você, eu que sabia que você também era eu, eu que jamais poderia novamente amar você porque jamais poderia chegar a amar a mim mesma.
nossos olhares se encontraram, e tragicamente fiz amor com você pela última vez, em glória, em delírio, em abismo, em compaixão. por tudo o que fomos, pelo tudo que fomos, pelo nada que fomos.
desviei derradeiramente o olhar, a virgindade para sempre perdida para o pó deste mundo de chão.