31 de março de 2005

...

"Com todos os olhos a criatura
vê o Aberto. Só os nossos olhos,
como que invertidos, são armadilhas postas
à volta de sua livre saída.
O que
fora, nós o sabemos apenas
pelo semblante do animal; desde pequenina,
obrigamos a criança a voltar-se e ver, atrás,
só o Aparente, não o Aberto, que
na cara do animal é tão profundo. Isento de morte.
Não vemos senão
esta; o livre animal
tem o seu ocaso sempre atrás de si
e à frente de Deus; quando avança,
avança, Eternidade adentro, como as fontes que correm.
      Nós nunca temos, um só dia sequer,
o puro espaço à nossa frente no qual as flores
se abrem infinitamente. Há sempre mundo
e jamais Lugar-Algum sem não: o Puro,
o não vigiado, que os homens vigiassem e    
conhecessem
infinitamente, sem o cobiçar. Criança,
um se perde no silêncio e é
abalado. Outro morre e ei-lo que
é.
Pois, perto da morte, não se vê mais a morte
e olha-se
para fora, com talvez a larga mirada do animal.
Os amantes, não fosse pelo outro
que a vista lhes encobre, estão perto disso e espantam-se...
Como por engano, abriu-se para eles
atrás do outro... Mas ninguém
passa adiante deste, e eis para eles de novo o mundo.
Voltados sempre para a criação, vemos
nela tão somente o reflexo do Livre
por nós mesmos ofuscado. A menos que o mudo olhar
de um animal nos trespasse de todo, quietamente.
Eis o que se chama Destino: estar de frente,
nada mais que isso, estar sempre de frente.

Houvesse uma consciência semelhante à nossa
no animal seguro de si, que vem até nós
noutra direção - e ele nos levaria
consigo em sua marcha. Todavia, o seu ser lhe é
infinito, incontido, sem qualquer reparto
ao seu estado puro, como seu olhar à frente.
E onde vemos futuro, ele vê o Todo
e a si próprio no Todo, para sempre a salvo.

Entretanto, no cálido animal alerta,
há o peso e aflição de uma grande melancolia.
Pois a ele também se apega aquilo
que nos subjuga amiúde - a lembrança,
como se outrora, mais fiéis, tivéssemos estado mais perto
daquilo para que se é impelido, numa comunhão
infinitamente suave. É afastamento aqui
tudo que lá era alento. Após a pátria primeira,
é-lhe a segunda híbrida e varrida de ventos.
      Oh a bem-venturança da miúda criatura
que
permanece sempre no seio que a conteve até nascer;
oh a felicidade da mosca que ainda saltita     
por dentro
até mesmo quando em núpcias: pois o seio é tudo.
E vê a semi-segurança do pássaro
que, por sua origem, quase conhece uma e outra coisa,
como se fosse a alma de um etrusco,
saída de um morto que o espaço acolheu,
embora com a figura jacente como tampa.
E quão atônito não fica o que, vindo de um seio,
tem de voar. Como, temeroso
de si mesmo, sulca o ar, qual
rachadura ao longo de uma xícara. Assim fende o vôo
do morcego a porcelana do fim de tarde.

E nós, espectadores sempre, em toda parte,
voltados pata tudo, nunca para fora!
Isso nos satura. Nós lhes pomos ordem. Despedaça-se.
Tornamos a por ordem e eis que nos despedaçamos.

Quem nos fez virar de tal maneira que,
façamos o que for, imitamos a postura
de quem se vai? Como aquele do alto
do derradeiro monte, a desdobrar-lhe uma outra vez ainda
seu vale todo, volta-se, detém-se e se demora -
assim vivemos nós em despedida sempre."


Rainer Maria Rilke
(é a oitava elegia duinense, que me caiu no colo esses dias. a luva. isso nos satura. nós lhes pomos em ordem. despeda~a-se, tornamos a por em ordem e eis que nos despedaçamos. quem nos faz virar de tal maneira que imitamos a postura de quem se vai? assim vivemos em despedida sempre.)

30 de março de 2005

...

isso é o meu aquário. estou suspensa nisso. nado em círculos. em cada direção que vejo só me vejo de encontro a isso a ele a mim mesma. em cada direção que vejo só vejo tudo refletido no vidro do aquário. não encontro saída. sem saída. me afogo.

estou suspensa. enquanto me suspendo me afogo.
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e tenho raiva, muita raiva. porque me parece trágico. porque me parece estúpido. porque me parece de uma gratuidade tão absoluta que praticamente se transmuda em cômica. não consigo explicar para as pessoas. me perguntam, mas como? mas por que? mas pra que? e não sei responder nunca sei responder nunca vou saber responder. e partilham da minha perplexidade minha angústia minha revolta. e partilho da minha perplexidade minha angústia minha revolta. e a verdade é que ninguém pode partilhar comigo minha perplexidade minha angústia minha revolta. ninguém fica perplexo por mim, ninguém se angustia por mim, ninguém se revolta por mim. ninguém pode. ninguém pode como eu. eu sempre pude mais do que os outros, porque posso mais, porque sinto mais. agora, porque é tudo meu. e eu não posso. não posso. eu estou num aquário, isso é o meu aquário. estou suspensa nisso, imersa nisso, encharcada nisso. em mim, nele. num aquário. nado em círculos, ao redor disso ao redor dele ao redor de mim mesma, em cada direção que vejo só me vejo de encontro a isso a ele a mim mesma. em cada direção que vejo só vejo tudo refletido no vidro do meu aquário.
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tem sido só sobreviver ultimamente. tem sido manter o mundo sob rédeas, me manter sob rédeas, manter as pessoas ao meu redor sob rédeas, matar o que não consigo manter sob rédeas. me matar se não consigo me manter sob rédeas. tem sido só sobreviver, segurar a cabeça acima d'água e sobreviver. não me deixar soterrar e sobreviver. ultimamente, ultimamente tem sido sempre. tem sido sempre ultimamente. só continuar me forçando a respirar e andar e falar como se nada tivesse acontecido ou jamais fosse acontecer novamente. tem sido sempre, me forçar a respirar, andar, falar. tem sido sempre, e jamais vai acontecer novamente. nada nunca acontece novamente mas sempre acontece novamente e isso não. isso não. não mais. jamais. como se não fosse ser. como se não fosse. não vai ser. não é. talvez nunca tenha sido. não, foi. mas não vai ser. não vai. não.

tem sido só negação ultimamente. ultimamente tem sido sempre.

26 de março de 2005

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"Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.


Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever; I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood,
For nothing now can ever come to any good."


W. H. Auden

2 de março de 2005

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há um tempo atrás escrevi que queria aprender a amar em silêncio. correção. queria aprender a não amar. quero.
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ainda não é depois.
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o pior é a qualidade de trágico. forças estranhas ao meu alcance compreensão controle decidem o meu destino por mim, inexoráveis, absolutamente inexoráveis. não é justo. mas nunca é justo. nunca nada é justo.
pode ser que seja agora, dessa vez. talvez agora eu finalmente desista dessa balela de fé.
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depois de tudo. depois de privação comida de insônia de vazio de desespero de angústia de silêncio de indiferença de abandono de taquicardia de dores de arrancar cabelos unhas carne sangue sonhos, céus, tantos e tantos sonhos. depois de tudo arrancado violentado massacrado, depois de tudo, de tudo, de tudo, ainda não é depois. ainda não é depois e estou seca. gasta. morta. ao menos em essência.