29 de dezembro de 2005

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"lily is dancing on the table
we've all been pushed too far
i guess on days like this you know who your friends are

just another dead fag to you, that's all
just another light missing on a long taxi ride

and i'm down to your last cigarette
and this "we are one" crap as you're invading
this thing you call love, she smiles way too much

but i'm glad you're on my side
sure, i'm glad you're on my side
still"


(tori amos)

(ano difícil, andando em círculos concêntricos, um menor que o outro, um menos que o outro, de alguma maneira os círculos não terminam, não terminam. não terminam nunca.
a resolução, única resolução: chega de círculos.
um ano decente pra todos.)

27 de novembro de 2005

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procuro um caminho que me procura, algo que salta aos olhos no horizonte. serei eu nos olhos do horizonte, ou os olhos do horizonte em mim? talvez seja só questão de sentar numa pedra na margem, esperar que ele me encontre. sento. espero.

mas.
...e se ele tiver a mesma idéia?

eu no horizonte em mim. no horizonte. em mim.
temos as mesmas idéias. esperamo-nos.

7 de novembro de 2005

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decomponho nosso encontro (seriam encontros? ainda não sei dizer) primeiro em formas básicas. cubos. cilindros. pirâmides. depois. quadrados. círculos. triângulos. depois. linhas. depois. pontos.
depois.
depois.

a escravização pela negação da forma é a escravização pela forma. a escravização pela forma é a escravização pela negação da forma. forma, disforma, tudo, escravização. somos escravos.
meu universo cubistificado se transmuda em camisa de força.

me afastar de você é me aproximar de você. me aproximar de você é me afastar de você. me afastar de você é me afastar de mim é me afastar de nós é me aproximar de você é me aproximar de mim é me aproximar de nós. me afastar de você é me aproximar de mim. distâncias são lentes e nenhuma distância está realmente lá enquanto tudo é permeado de toda distância do mundo. todas as formas são pontos permeados de toda distância. decomponho paisagens em pontos.

decompor nosso encontro em pontos é me afastar aproximar desfazer em coisa nenhuma. coisa nenhuma. tomo toda distância que inexiste e que permeia todas as formas desse nosso nós ainda dissolvida na forma sem forma desse nosso nós.

dissolvida em nosso nós, em nossos nós. nossos nós. nosso nosssos nós. ausência. onipresença. todanenhuma forma. camisa de força. forma. nosso nós. nossos nós. nós. decompor. desfazer os nós. desfazer o nós. desfazer todos nós.

que sobrem apenas. formas básicas. linhas. pontos.
que nada sobre.
que sobrem linhas.
que nada sobre.

somos as linhas. esses nós, esse nós. só linhas. emaranhadas, misturadas, fundidas. só linhas.
desfaçamo-nos em linhas.
desfaçamo-nos.

pairo em linhas.
pairo em pontos.
pairo em nós.
nós.

defaço-me. desfaçamo-nos.
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ipês são árvores que se despedem de flores na primavera. o mundo anda assim, ciclos sazonais invertidos. tudo invertido. tudo do avesso. paisagens cubistas. irreconhecíveis naturezas mortas vivas e homens com sem clarinetes e violões. assisto ipês se despedindo de flores, me despeço das minhas, outono no auge de primaveras. tudo invertido. eu invertida, minha face em desconstrução cubista no espelho, mulher com violão, mulher sem violão. mulher que chora. jackeline picasso se picasso a tivesse pintado uns cinqüenta anos antes. me observo cubista decomposta desconstruída decantada. desencantada. me observo cubista. me retorço me quebro me parto. parto. me despeço de flores, das minhas, flores em partida no auge da primavera. ou seria outono? despedir-me de flore. me preparar pra morrer. ou seria viver? ou seria? ou seria. morrer pra viver viver pra morrer. tudo a mesma coisa. tudo a mesmíssima coisa. tudo a mesmíssima coisa? não é isso ser cubista? desconstrução enquanto construção, decomposição enquanto composição. fundir shiva com brahma. transformar tudo em vishnu. concluir: não há permanência e tudo é a permanência da impermanência. permanência impermanência se dissolvem na paisagem do avesso. tudo que rui se constró tudo que se constrói rui ruiu está ruindo. está ruindo. enquanto falamos. enquanto falamos. enquanto falamos. tudo nasce vive morre enquanto falamos. tudo vive enquanto falamos. nós inclusive. morremos enquanto falamos, viver é morrer aos poucos. morro aos poucos. falamos. falo. vivo. morro. me decomponho. me componho. me recomponho. me decomponho. me acompanho. concomitantemente, tudo junto, tudo ao mesmo tempo. tudo enquanto falo. não há definição. não há nomes. falamos de tudo sem perceber que falamos de nada porque tudo é sui generis tudo é único e nessa unicidade tudo é dolorosamente a mesma coisa. todas as unicidades são combinações. cubos cilindros pirâmides quadrados círculos triângulos. linhas. linhas horizontais verticais diagonais perpendiculares paralelas. tudo que é paralelo se cruza. se dissolve. se funde. linhas. pontos. o mundo é cubista. me despeço de formas. me despeço de flores. haverá primaveraoutono a trazê-las de volta? me despeço. aguardo ipês florirem de novo num inverno que espero próximo. talvez então também eu.
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can you see, can you see, can you see?
the moon is so hollow
what's the use when i can see right through you?

what's the use?

14 de outubro de 2005

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a vida te dá esses pedaços infindáveis de experiência, e você cheio de cacos na mão sem saber muito bem o que fazer com eles. tudo desconexo, nada que se encaixe, nada que preste, nada que sirva para coisa alguma. nenhuma moral a ser extraída da história dos passos atrás, dops passos adiante. nada que você possa chamar de seu. o caminho debaixo dos seus pés se movendo feito esteira rolante e você tentando seguir o ritmo ofegante porque se não seguir você cai e cair é ainda pior que ofegar seguindo o ritmo.e você segue. segue tentando descobrir o que fazer com os cacos, são tantos, tantos, deveriam encaixar, deveria haver liga, não há liga, não encaixam, nada encaixa. deveria jogar fora, menos peso, mas você não os joga, ainda alimenta uma esperança meio cega, há de haver encaixe em algum lugar, você que não viu. você não joga nada fora. você não desiste de encaixar. nada encaixa. nada que você possa chamar de seu, nada. o caminho sob seus pés, também não é seu. nem é propriamente um caminho, convenhamos, é só uma esteira rolante, estatismo com impressão de movimento ou o movimento com impressão de estatismo. ou nenhum dos dois. tudo se move, nada se move. o móvel estático, o estático móvel, que resume todo o movimento planetário. tudo vindo de nada, indo pra lugar nenhum. você também. todos esses pedaços de experiência, tantos pedaços sem moral encaixe nexo. tantos pedaços, nenhum que você possa chamar de seu. você não joga fora. você se move sem se mover. sem lição. sem moral. sem encaixe. sem nexo. sem direção. sem nada. nada serve para coisa alguma. você se move.

3 de outubro de 2005

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o mundo ser um lugar previsível, tudo já ter sido visto lido dito, nada disso importa. as coisas serão o que quiserem e não há nada a fazer a respeito. me sinto cassandra, profetizando a estupidez de quem e do que existe ao meu redor, apontando, gritando esperneando. assistindo o universo dar de ombros e seguir seu rumo.
que catástrofes se prenunciem não impede que catástrofes aconteçam.
um otimista talvez dissesse, prenunciar catástrofes nos torna mais preparados para enfrentá-las.
eu de há muito já não sou mais uma otimista.

11 de setembro de 2005

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os momentos se sucedem, um a um, lenços coloridos que se puxam da cartola de um mágico que não faz mágicas, a vida como prestigitação. soaria insípido, mas dentre os lenços há aqueles que são claros, transparentes, exatos. puros. límpidos. água de nascente, insípida apenas pra quem nunca sentiu sede, pra quem nunca levou aos lábios água de poça por engano.
o encontro, foi puro. límpido. exato. não definível, senão por essa pureza, limpidez, exatidão. instantes não definíveis, exatos.
vida de prestidigitação, a única mágica presente naquilo que se oferece de plano pelo que é, nem mais nem menos, sem ilusionismo barato, sem mágica sem mágica. a mágica está nesse exato que raramente se mostra, neste exato raro e valiosíssimo. foi exato. exato.

4 de setembro de 2005

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"and i'm recording our history now on the bedroom wall
and when we leave the landlord will come and paint over it all

and i am walking out in the rain
and i am listening to the low moan of the dial tone again
and i am getting nowhere with you
and i can't let it go
and i can't get through

so now use both hands
please use both hands
oh, no don't close your eyes
i am writing graffiti on your body
i am drawing the story of how hard we tried"


(ani di franco, both hands)

2 de setembro de 2005

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ando me parecendo a única pessoa minimamente razoável do mundo.
deve haver algo de errado comigo.
.
.
.
... ou com o mundo.

24 de julho de 2005

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tenho estado absorvida na tarefa de observar minha vida enquanto ela dá voltas (uma? duas? muitas?) de cento e oitenta graus. cento e oitenta graus, em câmera lenta lenta lentíssima. lentíssima. no ritmo com que as árvores nascem. crescem. morrem.
árvores morrem.

estou absorvida nessa tarefa, nessa estranhíssima de morrer. de me observar morrendo. de me observar deixando de ser a pessoa que eu costumava ser. de me observar enquanto mato / matam / morre a pessoa que eu costumava ser. algo nascerá no lugar dela? observo absorvida. observo. absorvo. me absorvo.

observo a mim mesma enquanto morro. e estou quase terminando. de me observar. de morrer. estou quase terminando de me observar enquanto morro.

observo algo enquanto algo se fecha.
talvez algo em algum outro lugar se abra.

mas é certo. é certo que algo se fecha. observo enquanto se fecha. observo. absorvo. estou absorvida.

...
..
.
algo se fecha.

17 de junho de 2005

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os deuses me coagem ao individualismo. os deuses me obrigam a renegar o outro metafórico. me punem quando me recuso, mandam raios tempestades cataclismas. porradas. porradas em reação a um estender de mãos. porradas em reação a sorrisos. porradas em reação a nada. porradas. porradas. porradas. em paralelo, marte na um áries em ascenção no retorno solar. os deuses me coagem ao individualismo. cada vez menos me recuso. cada vez mais sou coagida. cada vez mais me rendo. cada vez mais só dou ao outro o puro e simples que decorre de um inafastável imperativo ético categórico. cada vez menos dou ao outro algo que decorra de uma espécie qualquer ou mínima de compaixão afeto generosidade. de amor. amor chega a soar risível. risível. risível.
cada vez mais sou coagida e cada vez mais o outro só existe para mim enquanto não me for moralmente possível dele declinar. fora disso: digo lamento, digo boa sorte, digo adeus.

o engraçado é isso já ser tão mais do que me seria socialmente exigível.

claro, exceções há. mas se afunilam. cada vez mais.

11 de junho de 2005

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a verdade é: me despojo, vejo ruínas, sei que ruínas são só ruínas. mas a verdade é: ainda consigo enxergar nas ruínas o suposto êxtase de ontem.
a verdade é: vejo ruínas que são só ruínas, e por ora o ontem me encobre a vista.
a verdade é: ainda.

cada vez menos: é verdade.
mas é verdade.
ainda.
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"Se gritasse, quem das legiões de anjos escutaria
o grito? E mesmo se, inesperadamente,
um deles me acolhesse no coração: sucumbiria à sua
existência mais forte! Pois o belo não é senão
o princípio do espanto que mal conseguimos suportar,
e ainda assim, o admiramos porque, sereno,
deixa de nos destruir. Todo anjo é espantoso.
E por isso me contenho e refreio o apelo
de um soluço obscuro. Então quem
nos poderia valer? Anjos, não, homens, não,
e os animais inventivos logo se apercebem
de que não nos sentimos muito em casa
no mundo das explicações. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta, para vermos e revermos
todos os dias. Resta-nos a estrada de ontem
e o apelo mimado de um hábito
que por nós se afeiçoou, permaneceu e não foi embora.
E a noite, a noite quando o vento cheio de espaços do mundo
nos desgasta a face - para quem ela não saberia ser desejo e suave decepção,
ela, cuja proximidade pesa sobre
o coração solitário! Será mais leve para os amantes?
Juntos, eles apenas encobrem um para o outro seu destino.
Ainda não sabias? Lança o vazio aprisionado nos braços
para os espaços que respiramos! Talvez os pássaros sintam,
num vôo de maior intimidade, o ar mais amplo.

É, na verdade, as primaveras se valem de ti. Muitas estrelas
te dão coragem para percebê-las. Do passado,
levantou-se uma onda, vindo em tua direção, ou,
ao passares por uma janela aberta,
um violino se entregou a ti. Tudo isso era vocação.
Será que respondeste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo anunciasse
uma amada? (Onde queres abrigá-la,
quando pensamentos grandes e estranhos entram e saem
de ti e na maioria das vezes ficam contigo à noite.)
Na saudade, canta os amantes; está muito
longe de ser imortal sua celebrada ternura.
As abandonadas, tu quase as inveja, elas,
que sentiste mais amorosas do que satisfeitas. Recomeça
sempre de novo a cantar o louvor que nunca se esgota.
Pensa: o herói se contém, até o ocaso
é motivo para o último nascimento.
Mas os amantes, a natureza esgotada
os recolhe, como se já não houvesse duas vezes as forças
para tal desempenho. Já pensaste suficiente em Gaspara Stampa
a ponto de toda jovem abandonada
sentir no poderoso exemplo desta amante
o desejo de ser como ela?
Estas dores, as mais antigas de todas, não deveriam enfim
tornar-se mais fecundas? Não já é tempo de, amando,
nos libertar e, tremendo, resistir ao amado:
como a flecha resiste à corda a fim de, toda concentrada no impulso,
ser mais do que ela mesma? Pois em parte alguma há permanência.

Vozes, vozes! Escuta meu coração, como outrora somente
santos escutavam: a ponto de o apelo vigoroso
os levantar do chão; e, impossíveis,
continuarem ajoelhados e nem se aperceberem:
tanta era a escuta. Não que possas suportar a voz de Deus,
de forma alguma. Mas escuta o que suspira
a mensagem ininterrupta que se forma do silêncio.
UM sussurrosobe agora para ti daqueles jovens mortos.
Em todos os lugares em que entraste, nas igrejas de Roma e
de Nápoles, não te chegava o apelo sereno de teu destino?
Ou uma inscrição não te impunha sua altivez,
como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa!
O que querem de mim? Em silêncio devo depor a máscara
de injustiça que muitas vezes impede
um pouco o movimento puro de seus espíritos.

É estranho, sem dúvida, já não habitar a terra,
já não seguir os costumes que mal foram aprendidos,
já não dar às rosas e às outras coisas, grávidas de
promessas, a significação do futuro humano;
já não ser o que era na angústia infinita
de mãos e abandonar até o próprio nome,
como um brinquedo quebrado.
É estranho já não desejar os desejos. Estranho
ver pairar, solto no espaço,
tudo que se relacionava. Estar morto é trabalhoso
e cheio de repetições para, aos poucos, sentir
uma parcela da eternidade. - Mas todos os vivos cometem
o erro de fazerem distinções muito fortes.
Anjos (assim se diz) muitas vezes nem saberiam se estão
passando entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
arrasta consigo pelos dois reinos
todas as idades e em ambos lhe sobrepuja o som.
Por fim, já não têm necessidade de nós, os jovens
que a morte ceifou. Com docura se perdem os hábitos das coisas terrestres
assim como é com ternura que o crescimento
afasta o seio materno. Mas nós, que necessitamos
de tão grandes mistérios, nós de quem surge, tantas vezes, por luto,
um progresso milagroso - : poderíamos existir sem eles?
Será vã a lenda de Lino, durante as lamentações por sua morte,
a primeira música ousou penetrar a rigidez da matéria
e então, no espaço cheio de espanto onde o jovem quase divino
repentinamente desapareceu para sempre, o vazio começou a vibrar
naquele ritmo que agora nos arrebata, nos consola e nos ajuda."


(Rainer Maria Rilke. a Primeira Elegia de Duíno. rilke não é poeta, é profeta. isso sou eu, agora. talvez só por enquanto. só talvez.)

24 de maio de 2005

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é uma carta. o destinatário não quis receber.

talvez esse seja o ponto final. talvez seja pretensão minha. talvez um dia chegue ao destino. talvez já tenha chegado. enfim.
talvez tudo seja pretensão minha.

enfim.

o amor é o fio. as andorinhas é que mudam.



meu anjo;

escrevo sem saber muito bem se isso vai ou não um dia chegar a você. mesmo que eu mande, mesmo que você leia, se mesmo assim o que eu escrevo vai chegar a você. escrevo não sei ainda muito bem por que; se porque acho que preciso dizer, se porque acho que você precisa ouvir. acho que um pouco dos dois.

e não entendo por que ainda não consigo deixar de querer dizer. melhor: por que ainda não consigo deixar de querer dizer A VOCÊ. deveriam me bastar as pessoas, todas essas outras pessoas que querem saber, todas essas pessoas que querem me ouvir. que me ouvem. não, ainda não bastam. ainda preciso dizer a você.

e por mais que precise dizer, penso que não diria, caso achasse que fosse fazer mal a você ouvir.

talvez seja que me sinto culpada. mas calma, que eu já explico.

os momentos escorrem lentos longe de você. entenda, não é que seja difícil, propriamente. é lento.

então: não tenho que destruir você dentro de mim. não tenho precisado desconstruir o você bonito que tinha, sempre tive, dentro de mim. não tem sido necessário me dizer mentiras a seu respeito, todas as mentiras que a gente se diz quando precisa matar alguém dentro da gente. ainda que me dissesse, e tentei dizer, seriam mentiras. eu saberia disso. eu sei.

acho que por isso tem sido lento, por isso os momentos escorrem lentos. vivemos tudo o que vivemos, lembro de você, lembro de tudo o que vivemos. tudo o que vivemos me parece bom e bonito e como algo gostei de ter vivido. não questiono, não me forço a me sentir de outro jeito, a ter raiva, a ter ódio. às vezes são momentos de alegria, esses em que você me vem. outros são doces. outros são melancólicos. outros são doloridos. aceito. deixo que vocême venha, quando quer que você me venha, como quer que você me venha. não distorço o você que me vem.

e sei que, contudo, com tudo, quero você comigo. não o que tínhamos, não nosso nós de ontem, não. tenho para mim com certo grau de certeza que isso não é mais possível. que não é mais o que eu quero.

mas sei que ainda quero sua voz, seu beijo, sua presença. sei que sinto falta da sua presença. da sua presença física concreta real. sei que sinto falta de ter você comigo. não sei se é porque ainda não superei, ou se éexatamente PORQUE superei. ou se é porque o você que me vem é mais doce que amargo. não sei. não me importa. minha tarefa é isso, agora, essa sua ausência. vivê-la. ser feliz no processo. aproximo-me disso.

a cada dia que passa sinto menos urgência de você. a cada dia que passa fico melhor nessa tarefa. essa tarefa pouco a pouco deixa de resumir minha vida longe de você.
a cada dia que passa fico melhor na tarefa, difícil tarefa, de viver sem você.

tem sido bom, ruim, o que quer que seja. tem sido isso: a vida. há vida longe de você. e há sorrisos lágrimas abraços toques amores longe de você. sei disso. sim, sempre soube disso. mas SEI disso, agora. ainda que preferisse não estar longe de você.

sei que mais e mais momentos escorrerão menos e menos lentos. que a vida será, e que, fora me matar, não há muito que eu possa fazer a respeito. não vou me matar. pelo menos, não por isso. há ainda muito de bonito de belo de trágico ao meu redor, me impedindo, segurando minha mão. dizendo fique, ainda temos muito a nos mostrar. então fico. e sei. sei que a vida será, que eu tentarei aprender a ser junto, que eu me tornarei melhor e melhor em ser junto com a vida. jáestou me tornando.

é aqui, agora, que eu começo a falar pra VOCÊ. não escrevo pra te contar as coisas que acabei de dizer, isso foi prólogo. escrevo porque me convenço que tenho coisas a dizer que vocêdeveria, quereria, gostaria de ouvir. escrevo porque sou arrogante. porque, na minha inesgotável arrogância (nós dois sabemos que, no fundo do fundo, eu sou mesmo de uma arrogância inesgotável), me parece certo que isso que tenho a dizer seja, pra você, algo, no mínimo, levemente agradável de ouvir.

a verdade é que percebo. percebo. a cada dia que escorre e que me traz mais longe do que me dói a sua falta, a cada instante em que sinto menos essa sua falta, a cada vez que me lembro de você e lembrar de você me pesa menos. a verdade éque, a cada um desses momentos, toda vez que você me vem: é mais com sorrisos, menos com lágrimas. a cada vez que você me vem, vejo mais nítido o contorno, mais fortes as cores, mais bela a imagem. a cada vez que vocême vem, percebo melhor o bem que você me fez.

sou uma pessoa melhor depois de você, e isso fica mais e mais claro a cada dia, aparece melhor a cada dia. antes de você, eu tinha muito medo. de tudo. de não ser amada, não ser querida, de não ser suficiente. de ser engolida pelo mundo grande e duro e mau que existe fora de mim. medo de tudo, tudo, tudo. de todos. principalmente, de todos. eu não era suficiente.

entenda: não é que você tenha me tornado suficiente. você não me tornou nada, e eu provavelmente já era suficiente antes de você. também sei disso. é que você me mostrou isso. vocême mostrou a pessoa que eu quero ser. eu me vi refletida nos seus olhos. você me mostrou. você, o encontro com você, a forma como nós chorávamos gritávamos gargalhávamos silenciávamos gemíamos juntos, tudo com você, tudo. tudo: mostrou que essencialmente é isso que eu sou. que eu estou caminhando pra isso, pra ser a pessoa que eu quero ser, que em grande parte já sou, que estarei mais e mais perto disso (parte do que eu quero ser éisso, esse estar sempre caminhando, dando um passinho, depois outro, depois outro ainda, e só parar quando não houver mais eu pra caminhar. parte do que eu quero é continuar querendo.)

você foi a primeira pessoa pra quem eu me mostrei o tanto que eu me mostrei pra você. você foi a primeira pessoa que viu o tanto que eu mostrei de mim pra você. vocêfoi a primeira pessoa que me amou, contudo, com tudo, com o tanto que eu mostrei pra você. você foi a primeira pessoa que ME amou. você me amou. VOCÊ ME AMOU.

porque eu já tinha amado muito antes de você. mas talvez nunca tenha sido vista E amada antes de você. talvez nunca tenha sido amada antes de você.
melhor: acho que nunca me percebi amada antes de você.
mais: eu nunca tinha persistido no amor depois de terminado o encontro.

eu nunca persisti no amor depois de terminado o encontro. e talvez também isso tenha mudado com você.

acho que nunca pensei que nada disso fosse possível.
e você me mostrou, é possível. é possível. é possível.

e agora eu sei. é possível.

é possível estar no mundo. é possível que eu seja amada por alguém que eu verdadeiramente ame. é possível que isso, que tudo, não desmorone de todo quando o encontro terminar. é possível que não sobre pra mim depois de tudo o que eu viver só o que eu carrego comigo. é possível que eu só queira verdadeiramente o que eu carrego comigo. é possível que eu queira apenas o meu próprio horizonte e que seja bom que só eu esteja nele. é possível. épossível, isso da vida. é possível.
A VIDA É POSSÍVEL.

e é possível que eu seja feliz na vida. ter estado com você me colocou mais perto disso, de ser uma pessoa segura, plena, feliz. ter estado com você me fez uma pessoa um pouco (ou um tanto) mais POSSÍVEL. eu sou uma pessoa possível (ou viável, não é isso que dizem dos fetos? estou sendo gestada. sou um feto um pouco mais viável por sua causa. talvez, um dia, até, chegue a nascer eu, essa pessoa que quero, que um dia vou, que talvez chegue a ser. talvez um dia eu nasça a pessoa que quero ser).

há, sim, conclusões amargas que decorrem da sua falta, não digo, não posso dizer, que não. há dor. há aquilo que eu vejo, que gostaria de não ver, que talvez quisesse que nunca me tivessem mostrado. há o amargo, mas o amargo não interessa aqui. não entrarei nos detalhes do amargo. não é ele o que tenho a dizer a você.

o que tenho a dizer a você é:
obrigada. obrigada. obrigada. por tudo isso, por tudo o mais. por todo o mais do bem que eu descobri, estou descobrindo, ainda vou descobrir, que ter encontrado você um dia me fez. OBRIGADA.

não, nada disso é definitivo, outras questões surgirão, pode não ser nada disso. a vida não é definitiva, a vida está sendo, eu estou sendo junto. eu não sou definitiva.
mas agora é o que é pra mim, e queria dizer isso que é pra mim. agora, sem você, pareço-me uma pessoa melhor do que era antes de você.

é aí que entra a tal culpa. não sei como você está, não sei suas aflições, não sei nada sobre você. não sei se você se parece uma pessoa melhor agora, depois de mim. não sei. e você não quer que eu saiba. tudo bem, estou bem, fico melhor e melhor, continuarei ficando. apesar disso. talvez até um pouco por isso.
mas me sinto culpada: por estar cada vez melhor, por não saber se o mesmo acontece pra você. acho que isso que tenho a dizer pode ajudar, pode ser bom, pode fazer bem a você também.

é, talvez não faça. talvez você já esteja bem longe do que vivemos, talvez esse seu jeito de lidar com tudo, essa distância, esse enterrar todos os resquícios dos seus cadáveres, talvez isso tudo que você faça pra partir perdoar superar esquecer caminhar continuar caminhando, talvez isso seja mesmo o melhor pra você. talvez esse meu dizer seja só eu exumando um dos seus cadáveres e trazendo mais dor a você. não sei se é. não quero que seja, espero que não seja, deus permita que não seja. deus permita que eu não cause mais dor ainda a você. porque quero tanto pra você esse tanto que você me deu. esse bem.

escrevo porque genuinamente acredito que você deve ouvir isso: que você me fez bem, um bem absurdo, um bem tremendo. que eu não tenho ódio de você, que não tenho raiva de você, que a cada dia tenho mais amor por você, mais gratidão a você. gratidão por isso de tão único que você me deu. a capacidade de ser. de não estar perseguindo infinitamente o fantasma do que eu achava que queria ser. de me bastar. a cada dia que passa me vejo melhor, e sei, sei que isso teve alguma coisa a ver com você. porque era diferente antes de você. porque é melhor, tão melhor, eu sou tão melhor, agora, depois de você.
acredito genuinamente que saber disso pode ajudar você a me enterrar melhor. deus me perdoe se não for assim. e me perdoe você, se não for assim.

você me disse uma vez que podia morrer em paz, que já semeou muito amor pelo mundo, que já marcou a vida, o coração de muita gente. esteja em paz, meu anjo. você marcou a minha vida, o meu coração. tão indelevelmente.
você também me disse que se talvez você viesse a me decepcionar, eu não iria amar você o tanto que eu amava. pelo menos por agora, você estava certo: amo você mais. quanto mais me afasto da dor, melhor e mais nítido isso me fica. sim, o amor mudou, está mudando, não sei o que vai ser no final, sequer se vai ser amor
(mas o que a gente realmente sabe do final, no final? a gente não sabe sequer se há, se não há, final).
não sei o que vai ser disso que sinto por você, não sei. mas sei que amo você agora.

o que fica mais claro a cada dia é:
a cada dia percebo em mim mais um pedaço da pessoa que quero ser. e amo você por isso. e obrigada por isso.

no mais, citando outrem, o passado é prólogo.
viver de passado, de futuro, é chegar sempre inacabado ao presente. abandonar a esperança, deixar de aguardar pedir implorar por um infinito algo que foi será seria (quem sabe? eu não), chegar ao presente, segurá-lo em nossas mão, senti-lo escorrendo: é o impossível.
mas agora me parece possível. agora me sinto mais pronta pra tentar.

amo você demais. além, no além de tudo, nas fronteiras do que sei. amo você.
seja muito, muito, muito feliz. quero poder fazer tudo, tudo mesmo, que estiver ao meu alcance pra levar você pra mais perto disso. mesmo que seja nunca mais estar perto de você.

SEJA FELIZ.
e ame.

22 de maio de 2005

...

"Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.
A dor, sobretudo,
parecia prazer.
Parecer era tudo
que as coisas sabiam fazer.
O próximo, eu mesmo.
Tão fácil ser semelhante,
quando eu tinha um espelho
pra me servir de exemplo.
Mas vice versa e vide a vida.
Nada se parece com nada.
A fita não coincide
com a tragédia encenada.
Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem."


(Paulo Leminski, in Distraídos Venceremos)
...

à medida que avanço o que vejo fica mais e mais incompreensível. sempre achei que seria o contrário. mas não. não sei se é alguma espécie de maturação, se não compreendo porque finalmente vejo que experimento e vejo que a experiência é insuscetível de cognição. me parece que talvez seja isso.

mas vejo que também esse ver a insuscetibilidade de cognição da experiência é buscar cognição da mesma experiência que vejo insuscetível de cognição. volto ao passo um do tabuleiro, passou minha vez de jogar os dados.

também me parece que sou insuscetível de alcançar o mundo despida de cognição. então conheço, raciocino, racionalizo, reconheço. a inutilidade de conhecer raciocinar racionalizar reconhecer. reconheço a inutilidade da compreensão enquanto compreendo. abandono a compreensão e me esforço por compreender de novo. e jogo os dados, ando no tabuleiro, retorno à primeira casa. denovo. denovo jogo os dados. de novo. talvez seja a isso que a vida se resume. jogar os dados. avançar no tabuleiro. retornar à primeira casa. reconhecer a inutilidade de se mover no tabuleiro enquanto nos movemos no tabuleiro enquanto reconhecemos a inutilidade de reconhecer a inutilidade de se mover no tabuleiro

talvez seja apenas nos mover no tabuleiro. talvez seja isso a vida. talvez aquilo que chamamos de deus seja o adversário no jogo. não sei. não compreendo enquanto compreendo e talvez um dia consiga não mais tentar ou conseguir compreender.

talvez um dia deus me deixe alcançar a última casa.

jogo os dados.

16 de maio de 2005

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sigo a vida que segue. converso. medito. tomo suco de frutas e comprimidos. retorno ao meu horizonte. meu horizonte retorna a mim. tenho de novo um horizonte novo, meu horizonte novo, pra mim.
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"Há na vida tanta coisa,
Tanta coisa e um só olhar!
Toda tristeza dos rios
É não poderem parar..."

(Mário Quintana, in A Cor do Invisível)

3 de maio de 2005

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"- - - - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não quero ficar com o que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro."

(e volto à Paixão Segundo G. H.
preciso dizer de quem?)

24 de abril de 2005

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"Soa estranho, esta manhã,
tudo o que sempre foi meu, como pode?
Como pode que esse som lá fora,
os sons da vida, a voz de todo dia,
pareça ficção científica?

Como pode que esta palavra,
que já vi mil vezes e mil vezes disse,
não signifique mais nada,
a não ser que o dia, a noite, a madrugada,
a não ser que tudo não é nada disso?

Pode que eu já não seja mais o mesmo.
Pode a luz, pode ser, pode céu e pode quanto.
Pode tudo o que puder poder.
Só não pode ser tanto."


(Paulo Leminski, em Distraídos Venceremos)
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estou plena de poesia de dor de ausência de falta. de incoerência, da minha inescapável incoerência. mas não, não me falo de sofismas. me bate a luz do sol nos olhos. choro. me deixo acariciar pela musicalidade do aterro. choro. choro deixo de chorar choro mais um pouco sorrio por entre lágrimas sorrio sem lágrimas. sorrio. choro. suporto a ausência. busco a poesia. busco a poesia. busco a poesia.
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and in the meantime, deus salve aqueles que não têm medo das próprias feridas. de encostar suas feridas nas minhas. de me deixar encostar minhas feridas nas suas. deus salve os que não tem medo. deus salve aqueles que estão de frente e que amam. que me amam. me amar não é fácil. gosto de pensar que vale a pena. talvez não valha. ainda assim. principalmente assim.

deus salve aqueles que estão de frente e que amam. somos almas irmãs.

23 de abril de 2005

PAZ

"Os caminhos estão descansando..."

(Mário Quintana, in A Cor do Invisível)

9 de abril de 2005

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as coisas são o que são são o que somos porque somos tudo que há e as coisas hão. é isso? é. não é. é para mim. não há outro para mim agora. tudo se esgota no sujeito. me esgotei no outro o outro se esgotou em mim. mas esgotou. o mundo meu mundo o único mundo que me existe o tudo que é sou serei, isso se esgota no sujeito. o mundo se esgota no sujeito. tudo é o que sou e não há outro pra mim agora. só eu. somos tudo que há. e sou tudo. pelo menos. para mim. agora.
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não quero mais, não posso mais. o outro me exauriu, e me exauri no outro, e estou exaurida. mais do que estou: sou. exaurida. não posso mais, não quero mais. mas a essência é, não há mais nada. exariu-se esgotou-se perdeu-se não pode mais não quer mais não deseja mais não há mais. porque não há. mas o agir, o agir não reconhece, o agir é de um amputado que sente coceiras formigamentos dores câimbras no membro que já não há. o agir age como se pudesse quisesse houvesse. o agir age como que há. não há. no agir que age como que há sem que há, estendo-me. estendo-me em direção a um outro, qualquer outro mas não se enganem: não há mais nenhum outro ali. ainda que eu me estenda.
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as coisas são o que são. somos o que somos. as coisas são o que são mas são o que somos porque não podemos ser nada além do que somos e só há para nós o que somos e se coisas há para nós para nós elas são o que somos. as coisas são o que são o que são é o que somos mas não são o que somos. são o que são. só nós somos o que somos. nós só somos o que somos. somos nós sós o que somos. somos tudo para nós. e o outro, ah, o outro. o outro também somos nós.
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eu costumava acreditar que a beleza brotava nas fendas das ruínas que o prazer se deixava fluir pelas entrelinhas da dor que flores nasciam em pedreiras. mas não. ruínas são só ruínas e não há nada que brote nas fendas. há fendas. há fendas onde há tudo onde não há nada. são fendas. fendas são fendas. fendas são fendas onde há o que há e não há o que não há. onde o que quisermos que haja. melhor: ruínas são ruínas fendas são fendas ruínas há fendas há. colocamos nas fendas o que queremos que haja mas não há o que colocamos. há ruínas e fendas. só há ruínas e fendas. e ruínas. só há ruínas. ruínas são ruínas por mais fendas que haja e por mais que tentemos fazer o que não há haver nas fendas o que há é o que há e o que não há é o que não há e o que tentamos fazer haver não há porque o que precisamos tentar fazer haver é o que não há. então não há. há ruínas. ruínas são ruínas. as coisas são o que são. as coisas são o que são. as coisas são o que são. não o que somos.
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"Subitamente, a liberdade se torna amarga. Acabo de conhecer a perda total e o vazio que a acompanha: nenhuma lembrança, não deixa memórias. Acho que experimento um leve arrependimento por ter falhado em morrer em vida. Mas continuo andando, passo da rua para a calçada, volto para a rua, caminho, os pés caminham."

(Marguerite Duras, em A Dor)
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"Certa vez, estava no cais do Sena, eram duas horas da tarde nde um dia de verão, alguém a beijou e disse que a amava. Ela estava lá, sabe muito bem. Tudo pode ser nomeado: foi no dia em que decidiu viver com um homem. Hoje, o que é? O que será? Logo ela estará na Rue Réaumur, na redação do jornal, trabalhando. Achamos que são coisas extraordinárias. São como todas as outras coisas, acontecem. Depois, já aconteceu. Poderia acontecer a qualquer um."

(Marguerite Duras, em A Dor)
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essa estória da vida valer a pena provavelmente é uma grande piada interna da humanidade que não me contaram.

31 de março de 2005

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"Com todos os olhos a criatura
vê o Aberto. Só os nossos olhos,
como que invertidos, são armadilhas postas
à volta de sua livre saída.
O que
fora, nós o sabemos apenas
pelo semblante do animal; desde pequenina,
obrigamos a criança a voltar-se e ver, atrás,
só o Aparente, não o Aberto, que
na cara do animal é tão profundo. Isento de morte.
Não vemos senão
esta; o livre animal
tem o seu ocaso sempre atrás de si
e à frente de Deus; quando avança,
avança, Eternidade adentro, como as fontes que correm.
      Nós nunca temos, um só dia sequer,
o puro espaço à nossa frente no qual as flores
se abrem infinitamente. Há sempre mundo
e jamais Lugar-Algum sem não: o Puro,
o não vigiado, que os homens vigiassem e    
conhecessem
infinitamente, sem o cobiçar. Criança,
um se perde no silêncio e é
abalado. Outro morre e ei-lo que
é.
Pois, perto da morte, não se vê mais a morte
e olha-se
para fora, com talvez a larga mirada do animal.
Os amantes, não fosse pelo outro
que a vista lhes encobre, estão perto disso e espantam-se...
Como por engano, abriu-se para eles
atrás do outro... Mas ninguém
passa adiante deste, e eis para eles de novo o mundo.
Voltados sempre para a criação, vemos
nela tão somente o reflexo do Livre
por nós mesmos ofuscado. A menos que o mudo olhar
de um animal nos trespasse de todo, quietamente.
Eis o que se chama Destino: estar de frente,
nada mais que isso, estar sempre de frente.

Houvesse uma consciência semelhante à nossa
no animal seguro de si, que vem até nós
noutra direção - e ele nos levaria
consigo em sua marcha. Todavia, o seu ser lhe é
infinito, incontido, sem qualquer reparto
ao seu estado puro, como seu olhar à frente.
E onde vemos futuro, ele vê o Todo
e a si próprio no Todo, para sempre a salvo.

Entretanto, no cálido animal alerta,
há o peso e aflição de uma grande melancolia.
Pois a ele também se apega aquilo
que nos subjuga amiúde - a lembrança,
como se outrora, mais fiéis, tivéssemos estado mais perto
daquilo para que se é impelido, numa comunhão
infinitamente suave. É afastamento aqui
tudo que lá era alento. Após a pátria primeira,
é-lhe a segunda híbrida e varrida de ventos.
      Oh a bem-venturança da miúda criatura
que
permanece sempre no seio que a conteve até nascer;
oh a felicidade da mosca que ainda saltita     
por dentro
até mesmo quando em núpcias: pois o seio é tudo.
E vê a semi-segurança do pássaro
que, por sua origem, quase conhece uma e outra coisa,
como se fosse a alma de um etrusco,
saída de um morto que o espaço acolheu,
embora com a figura jacente como tampa.
E quão atônito não fica o que, vindo de um seio,
tem de voar. Como, temeroso
de si mesmo, sulca o ar, qual
rachadura ao longo de uma xícara. Assim fende o vôo
do morcego a porcelana do fim de tarde.

E nós, espectadores sempre, em toda parte,
voltados pata tudo, nunca para fora!
Isso nos satura. Nós lhes pomos ordem. Despedaça-se.
Tornamos a por ordem e eis que nos despedaçamos.

Quem nos fez virar de tal maneira que,
façamos o que for, imitamos a postura
de quem se vai? Como aquele do alto
do derradeiro monte, a desdobrar-lhe uma outra vez ainda
seu vale todo, volta-se, detém-se e se demora -
assim vivemos nós em despedida sempre."


Rainer Maria Rilke
(é a oitava elegia duinense, que me caiu no colo esses dias. a luva. isso nos satura. nós lhes pomos em ordem. despeda~a-se, tornamos a por em ordem e eis que nos despedaçamos. quem nos faz virar de tal maneira que imitamos a postura de quem se vai? assim vivemos em despedida sempre.)

30 de março de 2005

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isso é o meu aquário. estou suspensa nisso. nado em círculos. em cada direção que vejo só me vejo de encontro a isso a ele a mim mesma. em cada direção que vejo só vejo tudo refletido no vidro do aquário. não encontro saída. sem saída. me afogo.

estou suspensa. enquanto me suspendo me afogo.
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e tenho raiva, muita raiva. porque me parece trágico. porque me parece estúpido. porque me parece de uma gratuidade tão absoluta que praticamente se transmuda em cômica. não consigo explicar para as pessoas. me perguntam, mas como? mas por que? mas pra que? e não sei responder nunca sei responder nunca vou saber responder. e partilham da minha perplexidade minha angústia minha revolta. e partilho da minha perplexidade minha angústia minha revolta. e a verdade é que ninguém pode partilhar comigo minha perplexidade minha angústia minha revolta. ninguém fica perplexo por mim, ninguém se angustia por mim, ninguém se revolta por mim. ninguém pode. ninguém pode como eu. eu sempre pude mais do que os outros, porque posso mais, porque sinto mais. agora, porque é tudo meu. e eu não posso. não posso. eu estou num aquário, isso é o meu aquário. estou suspensa nisso, imersa nisso, encharcada nisso. em mim, nele. num aquário. nado em círculos, ao redor disso ao redor dele ao redor de mim mesma, em cada direção que vejo só me vejo de encontro a isso a ele a mim mesma. em cada direção que vejo só vejo tudo refletido no vidro do meu aquário.
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tem sido só sobreviver ultimamente. tem sido manter o mundo sob rédeas, me manter sob rédeas, manter as pessoas ao meu redor sob rédeas, matar o que não consigo manter sob rédeas. me matar se não consigo me manter sob rédeas. tem sido só sobreviver, segurar a cabeça acima d'água e sobreviver. não me deixar soterrar e sobreviver. ultimamente, ultimamente tem sido sempre. tem sido sempre ultimamente. só continuar me forçando a respirar e andar e falar como se nada tivesse acontecido ou jamais fosse acontecer novamente. tem sido sempre, me forçar a respirar, andar, falar. tem sido sempre, e jamais vai acontecer novamente. nada nunca acontece novamente mas sempre acontece novamente e isso não. isso não. não mais. jamais. como se não fosse ser. como se não fosse. não vai ser. não é. talvez nunca tenha sido. não, foi. mas não vai ser. não vai. não.

tem sido só negação ultimamente. ultimamente tem sido sempre.

26 de março de 2005

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"Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.


Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever; I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood,
For nothing now can ever come to any good."


W. H. Auden

2 de março de 2005

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há um tempo atrás escrevi que queria aprender a amar em silêncio. correção. queria aprender a não amar. quero.
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ainda não é depois.
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o pior é a qualidade de trágico. forças estranhas ao meu alcance compreensão controle decidem o meu destino por mim, inexoráveis, absolutamente inexoráveis. não é justo. mas nunca é justo. nunca nada é justo.
pode ser que seja agora, dessa vez. talvez agora eu finalmente desista dessa balela de fé.
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depois de tudo. depois de privação comida de insônia de vazio de desespero de angústia de silêncio de indiferença de abandono de taquicardia de dores de arrancar cabelos unhas carne sangue sonhos, céus, tantos e tantos sonhos. depois de tudo arrancado violentado massacrado, depois de tudo, de tudo, de tudo, ainda não é depois. ainda não é depois e estou seca. gasta. morta. ao menos em essência.

24 de fevereiro de 2005

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mas estou dormente. sei que vou começar a formigar daqui a pouco, sei que vai começar a doer, angustiar, desesperar, daqui a pouco, muito pouco. mas agora está anestesiado, dormente, numb, escondido em algum lugar que ainda não sentiu o impacto, que ainda está em negação.
não sei se admitir com tranquilidade corriqueira coisas que seriam inconcebíveis, inadmissíveis, inimagináveis até cinco minutos atrás é sinal de alienação ou de nirvana. estou inclinada a optar pela primeira, mas bem que podia ser o segundo, ô podia.
perguntarei aos universitários. e saberei quando, se, quando, o impacto vier. por ora é o limbo.
como é difícil amar as pessoas.
ENTRANDO NO TERRENO DAS GENERALIZAÇÕES PERIGOSAS

todos, absolutamente todos, os problemas em seara de relações humanas parecem estar definidos no binômio: expectativas / não atendimento de expectativas. sim, eu disse todos.

mas desejo imensamente que o universo me prove errada. please do.

10 de fevereiro de 2005

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falta de excessos à parte, ando interessadísima (nãaaaooo!) em política. bradando aos cinco ventos contra o aumento de impostos das prestadoras de serviços (não, não sou prestadora de nenhum serviço, ou pelo menos, não de serviço remunerado). contra as excrescências da eleição para presidente da câmara de deputados. contra hugo chaves, fsm, mst, caros amigos. contra davos, fmi, bush, veja. ando interessadíssima em tudo isso e abismada porque ninguém esta interessadíssimo em nada disso. abismada. dinheiro publico, queridos, dinheiro publico. ou seja, meu, seu, dos outros. de ninguém, aparentemente.

mas alugo ouvidos alheios e me abismo com a relutância dos ouvidos alheios em serem alugados.

eu mesma tenho meus periodos de alheamento, necessários para não sair correndo do país sem nem apagar a luz. eu mesma me alieno, mas sou profundamente intolerante com a alienação dos outros quando não estou alienada. muito feio. não deveria me alienar. me alieno por instinto de sobrevivência. não tolero o instinto de sobrevivência dos outros. talvez porque nem sempre a alienação seja sinônimo de instinto de sobrevivência, sim, talvez. mas enfim. ainda assim. muito feio.

é só que são sempre os mesmos absurdos e nunca ninguém sabe, quer saber, vai saber. todo mundo reage como se fosse sempre uma grande novidade, ou nenhuma novidade, é tudo uma merda, tudo uma grandissíssima merda, mas então, vai fazer sol no fim de semana? e ninguém sabe. só quando todo mundo souber, quiser saber, vier a saber, só então talvez não aconteçam mais os mesmos absurdos. vivo entre a expectativa da utopia e a expectativa da fuga. cenas dos próximos capítulos dirão o que virá primeiro.

no meio tempo, ando interessadíssima em tudo isso, e os pobres dos ouvidos que ando alugando andam interessadíssimos em me evitar a qualquer custo.
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carnaval de descompressão - compressão e descompressão sendo as palavras de ordem do tempo presente. vácuo absoluto no quesito noitadas, festas, sambas enredo, desfiles, álcool. pouca cafeína. nenhum estudo. floresta da tijuca, lagoa, calçadão de copacabana. um pouquinho de praia e de sol, cineminha de tarde, boa mesa, boa cama. olhar a roupa rodando na máquina de lavar. trânsito, como tem trânsito no rio no carnaval. ando uma moça de poucos, quase nenhum, nenhum, excesso.
essa quinta feira de cinzas carece de cinzas. agora é que o ano começa. ou segunda feira que vem, já que tudo que dá pra adiar um pouquinho a gente adia.

25 de janeiro de 2005

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<>
mas sim, continuo sem computador, e na dependência de computadores alheios encabulativos. mas, mais do que a isso, o ínfimo volume de posts aqui exposto se deve ao fato de que estou me obrigando a não me obrigar a postar. a não me obrigar a escrever, de uma maneira geral.
há vantagens, desvantagens, mais desvantagens ainda nessa postura, sim, eu sei. a coisa é que já ando me obrigando demais a tantas outras coisas que, nesse momento, por esse ou aquele motivo, são prioritárias.
já tenho 624 anos. tive meu rito de passagem, meu rito de passagem já passou, e com meu rito de passagem passado, passou da hora de crescer. e tudo bem que já sou, sempre fui, muito crescida para muita coisa. mas, céus, para outras, tantas outras. falta vocação para a vida. e já está na hora de criar vocação para a vida. ou pelo menos de suar para chegar perto do minimamente aceitável na postura diante da vida.
é uma opção pessoal, não é pressão externa, não é necessidade premente. é só uma decisão que tem me parecido inexorável. a hora é agora, a vida urge, o mundo me bate na porta. essa vida de gente grande, que, torço, está prestes a tornar-se minha, só minha, genuinamente minha. de mais ninguém que o valha.
e, quem sabe, logo serei gente grande. logo estarei pagando contas /dando uísque de presente para os amigos / assinando financiamento/ fazendo networking / e todas essas coisas que gente grande faz. mas preciso me obrigar a um monte de coisas pra poder um dia vir a fazer todas essas outras coisas. escrever, sadly, não vai pagar as minhas contas.
mas escreverei quando não houver outra escolha ou caminho, o que foi o caso em tantos outros momentos da minha vida. quando tiver que escrever. quando precisar desesperadamente dizer.
isso aqui continua sendo o meu refúgio. mesmo que ninguém mais leia porque é hoje impossível identificar qualquer espécie de freqüência no meu padrão de escrita. independentemente de platéia, porque platéia nunca foi meu foco (ou, pelo menos, sempre tentei que não fosse). continuarei escrevendo, eventualmente. só decidi que não vou me obrigar a escrever.
no fim, a essência da coisa é sempre o fluxo. correntes ora me levam para outras direções. mas acabarão me trazendo de volta pra cá.
ESSE POST DEVERIA TER SIDO ESCRITO DUAS SEMANAS ATRÁS
tsunami é a palavra mais banal do mês, do ano, da década. virou metáfora pra falar de tudo. absolutamente tudo. tragédias de todo tipo. preço do pão. todo mundo quer usar. toda vez que entro em contato com essa palavra, parece que o interlocutor está me dizendo "olha-tia-olha-eu-sei-o-que-é-tsunami", e me pedindo pra ganhar uma estrelinha dourada no caderno.
não utilizarei novamente, se é que algum dia utilizei, portanto. por tanto.
deus nos proteja toda vez que a imprensa aprende uma palavras nova.