17 de junho de 2005

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os deuses me coagem ao individualismo. os deuses me obrigam a renegar o outro metafórico. me punem quando me recuso, mandam raios tempestades cataclismas. porradas. porradas em reação a um estender de mãos. porradas em reação a sorrisos. porradas em reação a nada. porradas. porradas. porradas. em paralelo, marte na um áries em ascenção no retorno solar. os deuses me coagem ao individualismo. cada vez menos me recuso. cada vez mais sou coagida. cada vez mais me rendo. cada vez mais só dou ao outro o puro e simples que decorre de um inafastável imperativo ético categórico. cada vez menos dou ao outro algo que decorra de uma espécie qualquer ou mínima de compaixão afeto generosidade. de amor. amor chega a soar risível. risível. risível.
cada vez mais sou coagida e cada vez mais o outro só existe para mim enquanto não me for moralmente possível dele declinar. fora disso: digo lamento, digo boa sorte, digo adeus.

o engraçado é isso já ser tão mais do que me seria socialmente exigível.

claro, exceções há. mas se afunilam. cada vez mais.

11 de junho de 2005

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a verdade é: me despojo, vejo ruínas, sei que ruínas são só ruínas. mas a verdade é: ainda consigo enxergar nas ruínas o suposto êxtase de ontem.
a verdade é: vejo ruínas que são só ruínas, e por ora o ontem me encobre a vista.
a verdade é: ainda.

cada vez menos: é verdade.
mas é verdade.
ainda.
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"Se gritasse, quem das legiões de anjos escutaria
o grito? E mesmo se, inesperadamente,
um deles me acolhesse no coração: sucumbiria à sua
existência mais forte! Pois o belo não é senão
o princípio do espanto que mal conseguimos suportar,
e ainda assim, o admiramos porque, sereno,
deixa de nos destruir. Todo anjo é espantoso.
E por isso me contenho e refreio o apelo
de um soluço obscuro. Então quem
nos poderia valer? Anjos, não, homens, não,
e os animais inventivos logo se apercebem
de que não nos sentimos muito em casa
no mundo das explicações. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta, para vermos e revermos
todos os dias. Resta-nos a estrada de ontem
e o apelo mimado de um hábito
que por nós se afeiçoou, permaneceu e não foi embora.
E a noite, a noite quando o vento cheio de espaços do mundo
nos desgasta a face - para quem ela não saberia ser desejo e suave decepção,
ela, cuja proximidade pesa sobre
o coração solitário! Será mais leve para os amantes?
Juntos, eles apenas encobrem um para o outro seu destino.
Ainda não sabias? Lança o vazio aprisionado nos braços
para os espaços que respiramos! Talvez os pássaros sintam,
num vôo de maior intimidade, o ar mais amplo.

É, na verdade, as primaveras se valem de ti. Muitas estrelas
te dão coragem para percebê-las. Do passado,
levantou-se uma onda, vindo em tua direção, ou,
ao passares por uma janela aberta,
um violino se entregou a ti. Tudo isso era vocação.
Será que respondeste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo anunciasse
uma amada? (Onde queres abrigá-la,
quando pensamentos grandes e estranhos entram e saem
de ti e na maioria das vezes ficam contigo à noite.)
Na saudade, canta os amantes; está muito
longe de ser imortal sua celebrada ternura.
As abandonadas, tu quase as inveja, elas,
que sentiste mais amorosas do que satisfeitas. Recomeça
sempre de novo a cantar o louvor que nunca se esgota.
Pensa: o herói se contém, até o ocaso
é motivo para o último nascimento.
Mas os amantes, a natureza esgotada
os recolhe, como se já não houvesse duas vezes as forças
para tal desempenho. Já pensaste suficiente em Gaspara Stampa
a ponto de toda jovem abandonada
sentir no poderoso exemplo desta amante
o desejo de ser como ela?
Estas dores, as mais antigas de todas, não deveriam enfim
tornar-se mais fecundas? Não já é tempo de, amando,
nos libertar e, tremendo, resistir ao amado:
como a flecha resiste à corda a fim de, toda concentrada no impulso,
ser mais do que ela mesma? Pois em parte alguma há permanência.

Vozes, vozes! Escuta meu coração, como outrora somente
santos escutavam: a ponto de o apelo vigoroso
os levantar do chão; e, impossíveis,
continuarem ajoelhados e nem se aperceberem:
tanta era a escuta. Não que possas suportar a voz de Deus,
de forma alguma. Mas escuta o que suspira
a mensagem ininterrupta que se forma do silêncio.
UM sussurrosobe agora para ti daqueles jovens mortos.
Em todos os lugares em que entraste, nas igrejas de Roma e
de Nápoles, não te chegava o apelo sereno de teu destino?
Ou uma inscrição não te impunha sua altivez,
como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa!
O que querem de mim? Em silêncio devo depor a máscara
de injustiça que muitas vezes impede
um pouco o movimento puro de seus espíritos.

É estranho, sem dúvida, já não habitar a terra,
já não seguir os costumes que mal foram aprendidos,
já não dar às rosas e às outras coisas, grávidas de
promessas, a significação do futuro humano;
já não ser o que era na angústia infinita
de mãos e abandonar até o próprio nome,
como um brinquedo quebrado.
É estranho já não desejar os desejos. Estranho
ver pairar, solto no espaço,
tudo que se relacionava. Estar morto é trabalhoso
e cheio de repetições para, aos poucos, sentir
uma parcela da eternidade. - Mas todos os vivos cometem
o erro de fazerem distinções muito fortes.
Anjos (assim se diz) muitas vezes nem saberiam se estão
passando entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
arrasta consigo pelos dois reinos
todas as idades e em ambos lhe sobrepuja o som.
Por fim, já não têm necessidade de nós, os jovens
que a morte ceifou. Com docura se perdem os hábitos das coisas terrestres
assim como é com ternura que o crescimento
afasta o seio materno. Mas nós, que necessitamos
de tão grandes mistérios, nós de quem surge, tantas vezes, por luto,
um progresso milagroso - : poderíamos existir sem eles?
Será vã a lenda de Lino, durante as lamentações por sua morte,
a primeira música ousou penetrar a rigidez da matéria
e então, no espaço cheio de espanto onde o jovem quase divino
repentinamente desapareceu para sempre, o vazio começou a vibrar
naquele ritmo que agora nos arrebata, nos consola e nos ajuda."


(Rainer Maria Rilke. a Primeira Elegia de Duíno. rilke não é poeta, é profeta. isso sou eu, agora. talvez só por enquanto. só talvez.)