29 de novembro de 2003

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e eu subo às alturas, e desço às profundezas. do abismo ao firmamento ao abismo ao firmamento. ao abismo, há sempre mais abismos, há sempre mais inferno. a vertigem, sempre a vertigem. e agora que você está ao meu lado, se eu mantiver você ao meu lado, sem perceber, sem querer, vou arrastar você comigo. ao firmamento, sim. mas ao abismo, céus, o abismo. não quero não quero não quero arrastar você comigo para os infernos dos meus abismos. mas terror de que a distância entre nós aumente e aumente se você não me acompanhar a descida. se você não percorrer também meus infernos. a distância aumentará certamente, e os abismos e infernos sussurram meu nome em voz de sereia, e obedeço aos chamados, ordenando a você que me deixe, implorando a você que me siga. seja meu orfeu, não seja. não seja. não, não preciso de você para me salvar dos infernos. mas me acompanhe o percurso. ou não estaremos mais juntos quando eu for engolida pelo abismo e os portões do inferno se fecharem. me acompanhe ao abismo se você não deseja me perder para ele. e eu emergirei eventualmente. e eventualmente você emergirá comigo. se suportar o percurso. suporte o percurso comigo. e emergiremos. emergiremos.
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por vezes beira o cruel, isso de submeter as pessoas ao convívio comigo.

28 de novembro de 2003

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talvez seja que finalmente começo a me sentir em paz com a imagem que me encara do espelho, talvez seja isso. talvez eu finalmente esteja pronta pra permitir que ela respire. permitir que ela viva. mesmo que isso signifique não mais lutar, entende? porque eu me quero viva. e se você vier junto, melhor, tanto melhor. tanto melhor que estejamos vivos juntos em vez de nos matarmos mutuamente aos poucos. esteja comigo, esteja vivo comigo. não se mate em meu nome, não me deixe me matar em seu nome. esteja vivo comigo. porque eu finalmente me quero viva, entende? e talvez seja isso a glória. a revelação. talvez seja isso o sinal que eu aguardava. que aguardo.
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e os outros sempre foram meus motivos para o suicídio. sempre foram meus motivos para tomar a contramão da vida, me despedaçar, me assassinar, me aniquilar, eu gosto tão pouco de mim que qualquer motivo pra me aniquilar me serve. os outros eram só nomes numa nota a explicar as razões do suicídio. e você não. e por você não me quero matar. e talvez seja que finalmente eu não me queira matar, talvez seja que finalmente comecei a me reconciliar com esse rosto no espelho que eu sempre achei tão pouco tão menos tão nada de tudo que eu queria clamava implorava desesperadamente por ver. por ser. e talvez seja que não preciso mais de desculpas pra me odiar. e talvez seja que não quero mais me odiar. e talvez seja finalmente a paz. o começo da paz. e talvez seja você. e talvez você se torne nome numa nota a explicar minha permanência. talvez você venha com o começo da paz. não quero lutar por você, não quero dar meu sangue por você, não quero a espada reta do inimigo no coração por você. quero viver, quero que você venha junto disso. a paz. quero a paz. quero que você venha com ela. venha com ela.
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"A desistência é uma revelação.

Desisto, e terei sido a pessoa humana - é só no pior de minha condição que esta é assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e, para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço - viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono.

Chego à altura de poder cair, escolho, estremeço e desisto, e, finalmente me votando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim - eis que tudo o que não tenho é que é meu. Desisto e quanto menos sou mais vivo, quanto mais perco o meu nome mais me chamam, minha única missão secreta é minha condição, desisto e quanto mais ignoro a senha mais cumpro o segredo, quanto menos sei mais a doçura do abismo é o meu destino. E então eu adoro."


(Clarice Lispector, in A Paixão Segundo G.H.)
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o estranho é que sempre estive disposta a lutar. por árduo que fosse o caminho, por inatingível que fosse o cume, por impossível que fosse a vitória, sempre estive disposta a lutar. nunca me rendi. nunca desisti. a todas e cada vez, fui rendida pelo inimigo, espada reta no coração, me deixava matar, morria, mas morria lutando, nunca desisti de lutar. e ressucitava em fênix para a batalha seguinte. e lutava. e agora não. e por você não. e por isso não. e não porque você não seja digno de luta. é a luta que não me parece digna de mim. o suor as lágrimas o sangue são meus. meus. não quero mais dá-los a ela. não quero mais me dar a ela. porque sempre foi a luta, sabe? nunca foi aquilo por que lutava. sempre pela luta. sempre as desculpas. um motivo, qualquer que fosse. algum motivo pra continuar lutando. algum motivo pra me matar, pra deixar que me matassem, pra renascer das cinzas. algo que eu pudesse escrever no bilhete de suicídio. e agora não. e por você não. não vou tranformar você em motivo pra me derramar em suor, pra me esvair em sangue, pra levar a espada do inimigo reta no coração, pra me deixar matar, pra me matar, pra morrer, pra ressucitar, pra então repetir tudo de novo e de novo e de novo em nome de outro. e de outro. e não. você é mais que apenas de novo o motivo para o meu próximo suicídio. você é mais que isso. tem que ser.

a desistência é uma revelação.
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"Jardim perdido, a grande maravilha
Pela qual eternamente em mim
A tua face se ergue e brilha
Foi esse teu poder de não ter fim,
Nem tempo, nem lugar e não ter nome.

Sempre me abandonaste à beira duma fome.
As coisas nas tuas linhas oferecidas
Sempre ao meu encontro vieram já perdidas.

Em cada um dos teus gestos sonhava
Um caminho de estranhas perspectivas,
E cadas flor no vento desdobrava
Um tumulto de danças fugitivas.

Os sons, os gestos, os motivos humanos
Passaram em redor sem te tocar,
E só os deuses vieram habitar
No vazio infinito dos teus planos."


(Sophia de Mello Breyner Andresen, escritora portuguesa)

27 de novembro de 2003

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"Esgotei o meu mal, agora
Queria tudo esquecer, tudo abandonar
Caminhar pela noite fora
Num barco em pleno mar.

Mergulhar as mãos nas ondas escuras
Até que elas fossem essas mãos
Solitárias e puras
Que eu sonhei ter."


(Sophia de Mello Breyner Andresen, escritora portuguesa)

25 de novembro de 2003

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"Mas é mesquinho, isso
de pensar no que não foi. Há também uma aparência
de censura na comparação que não te atinge.
O que acontece tem tamanho avanço
sobre a nossa opinião que não o alcançamos nunca
nem descobrimos como era realmente.
Não te envergonhes quando os mortos te roçarem,
os outros mortos, os que agüentaram
até o fim. (O que quer dizer fim?) Troca
o olhar com eles, tranqüilo, como de uso,
e não temas que o nosso luto te
sobrecarregue, a ponto de lhe dares na vista.
As grandes palavras de outrora, quando
acontecer não era ainda visível, não são para nós.
Quem fala de vitórias? Suportar é tudo."


(Rainer Maria Rilke, poeta alemão)

24 de novembro de 2003

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a rosa e o infinito. agora só falta mostrar o om.
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tenho mania de estar sempre olhando pra cima. para o céu. e com horário de verão tem sido isso, voltar pra casa a tempo de assistir a luz se dissolvendo no céu devagar à medida em que a noite avança, azul claro aos poucos se diluindo, virando azul violeta, e então azul escuro, e então azul nenhum. cor nenhuma. então a ausência de toda cor entremeada de estrelas, de alguns pontos que levam milhares e milhares de anos para que finalmente eu chegue a vê-los. a tempo de assistir a noite aos poucos cobrir o dia como uma cortina. aos poucos. muito aos poucos. o contorno das nuvens brilhando amarelo e então alaranjado e então rosado até que somem as nuvens, até que elas só se deixam perceber porque nos espaços que ocupam não enxergamos as estrelas. e tem sido isso, é sempre isso, enquanto volto pra casa.

acho que gosto do horário de verão. porque tenho essa mania besta de estar sempre olhando pra cima.

22 de novembro de 2003

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estender minhas mãos. tocar as cicatrizes do outro, essas cicatrizes do outro que são minhas próprias cicatrizes. tocar o outro por enxergar em sua face a minha própria face refletida. em espelho. tocar aquilo que enxergo de meu no outro, exercício do mais absoluto narcisismo. estender minhas mãos para o outro porque sou o outro. porque o outro sou eu. o outro sou eu. somos nós.

21 de novembro de 2003

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e volta e meia encontro no fundo dos olhos de outra pessoa essa minha frustração, essa minha angústia, essa minha mais absoluta solidão. essa mesma dor. essas cicatrizes, todas essas cicatrizes. e são tantas cicatrizes. e é tanta dor. e eu desejo poder fazer por ela tudo que nunca foi feito por mim, que nunca poderia ter sido feito por mim. desejo fazer por ela tudo que não pode ser feito por ninguém. cura, anestesia, lobotomia, eutanásia, chame do que quiser: mas que cesse. só desejo que pare. a dor dos outros, a minha. que tudo cesse.
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"Não é verdade a tua solidão. A um canto,
do lado de fora, meu coração espera:
fênix dolorosa, consome-se e renasce,
fiel. Quem sabe,
quando abrires uma fresta em tua porta,
te alegrarás vendo-o aí, guardando
essa luz que se alastrará por rios sem fim
de uma geografia desconhecida:
e só os escolhidos entenderão."


(Lya Luft, escritora brasileira)

19 de novembro de 2003

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    "tão doce, tão cedo
tão já
    tudo de novo vira começo"


(Paulo Leminski, poeta brasileiro)

18 de novembro de 2003

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"Todos esses Anjos que à noite
agitam cortinas e sussurram frases
que temes entender:
se te tomarem nos braços,
se te beijarem na boca,
se te entrarem no corpo,
não te darão certeza de que morrer, viver,
são igualmente suaves e difíceis,
loucos e sensatos, e urgentíssimos?

Poderás enfim amar, rendendo-te àquilo
que te aflora com suas asas,
te chama com suas vozes,
te vara constantemente com essa luz,
essa dor."


(Lya Luft, escritora brasileira)
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isso vai terminar. vai terminar, ouviu? acho bom que tenha ouvido. e se ouviu, então me diga de novo. e de novo. porque já não ouço, não ouço mais nada, ouço minha respiração, ouço sua respiração, não ouço mais nada. nada. eu me perco, já me perco no que sei e deixo de saber. já me esqueço. esqueço, me esqueço, vencida, vencida em tudo aquilo que busco proteger, por tudo aquilo que eu quero, que eu quero tanto e tanto. vencida em tudo por tudo sempre, tudo me vence sempre sempre o tempo todo. então me diga de novo, vai terminar. de novo. e de novo. quem sabe eu não me lembre, quem sabe eu não me lembre e não consiga enfim me proteger e não ser vencida por tudo que quero tanto e tanto. não, espere, não me lembre. ou me lembre. de novo. e de novo. e quando eu me lembrar, por favor, me faça esquecer. de novo. e de novo. assim.

17 de novembro de 2003

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como é que a gente faz pra entrar num barco que a gente sabe que vai afundar?
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e eu fico tentando encontrar um argumento, sabe? só um argumento, unzinho, e acho que nem precisa ser um argumento bom. só um argumento pra me convencer de que não vale a pena. de que o melhor é ficar você no seu canto e ficar eu no meu canto e ficar todo mundo nos seus respectivos cantos e ninguém no respectivo canto de nenhum outro ninguém. porque é procurar sarna pra se coçar, sabe? porque você sabe que vai acabar, eu sei que vai acabar, todo mundo sabe que vai acabar, tudo acaba, sabe? e você sabe eu sei todo mundo sabe que vai doer pra caralho, porque sempre dói pra caralho, sabe? sempre dói pra caralho, essas coisas são assim mesmo, todo mundo sabe. essas coisas são assim mesmo, é subir subir subir pra cair de mais mais mais alto, sabe? só pra cair de mais alto. porque é muito bom agora e é questão de tempo até não ser muito bom mais e é questão de tempo até doer pra caralho e vai doer pra caralho e quanto mais eu fico aqui e quanto melhor é agora mais vai doer no final e eu começo a pensar que não vale a pena e que esse papo zen roberto carlos de que o que importa são as emoções que vivi é, putz, que porra nenhuma esse papo. porque é abrir espaço pra você na minha vida, é trazer você pra minha vida, sempre na certeza de que você vai sair da minha vida e que esse espaço que você ocupa vai ficar vazio vazio vazio e que esse espaço vazio vai doer pra caralho. e eu aguento doer pra caralho, sempre aguento, mas será que eu quero? e medo, muito medo, porque cada vez parece que vai doer mais, e o doer pra caralho vira doer pra mais e mais caralho, tudo bem que a carapaça é dura, tudo bem que você é árvore de cerrado, tudo bem que eu tenho seiscentos e vinte e três anos, mas putz, será que vale? será que não é melhor ficarmos pelos cantos da vida sem encontro sem amor sem porra nenhuma mas com paz? e eu morro de medo e eu estou a um passo de sair correndo porta afora mundo adentro pra longe muito longe desse amor que você me oferece assim tão sem reservas e da dor que você me oferece no futuro talvez próximo talvez distante mas no futuro inevitável. e estou procurando argumento, só um, e porta, e mundo, e não mais você. um argumento. unzinho.

16 de novembro de 2003

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"Em minha frente caminhas
Pesado do teu desejo,
Pesado da tua graça,
E as tuas mãos tocam as coisas que hão-de vir
E a sua sombra cobre a tua face.

E em tua frente estou suplicante e exausta
Pois a tua vinda apaga
Os meus frágeis gestos de alegria.
E em tua frente estou suplicante e exausta
Pois a tua vinda quebra
A minha vinda.

Às vezes todo o dia o teu sorriso
Está presente em cada coisa:
No fundo dos espelhos e nos vidros,
No vermelho das rosas e nos astros.
E através dessa presença caminho em delírio
Para o grande cintilar dos teus desastres
Onde me quero destruir."


(Sophia de Mello Breyner Andresen, escritora portuguesa)